
Mobilidade guarani e sua relação com o cosmos
Os textos dessa seção foram produzidos com base em uma conversa via vídeo-chamada entre os interlocutores Renan Pinna e Renata Abel com Marcelo Benite Kuaray Papa, cacique da comunidade guarani da Aldeia Tava’i, dentro do escopo do Projeto Nhemongarai, em 15 de abril de 2021. O texto a seguir foi elaborado por Renan Pinna.
Na cultura guarani o caminhar tem um significado fundamental para se pensar o mundo, as relações, e o modo tradicional de viver nesta terra. Ao falar sobre caminhar, não estamos falando somente de caminhar no sentido literal mas também metafórico, isto é, o caminho não somente enquanto andar, mas também, e sobretudo, como modo de se comportar e de viver nesta terra. Neste sentido, a expressão tape porã, usualmente traduzida como um bom caminho, não significa apenas um caminho, uma trilha, considerada boa na perspectiva guarani. Mas também, um modo de vida, um modo de comportamento ancorado nos costumes dos anciãos, no próprio nhandereko, o modo de vida tradicional do povo guarani. Há vários pilares e ensinamentos fundamentais que guiam esse caminhar nesta terra, um deles está ancorado no estabelecimento contínuo da vida espiritual, vivenciada através da casa de reza, na opy, onde cantos e danças são realizadas, e que são inspiradas nos cantos e danças dos ancestrais, que vivem na plataforma celeste juntos aos deuses cantando e dançando também. Na casa de reza, o amba, instrumento de comunicação divina com os seus ancestrais, usualmente traduzido como altar, permite o recebimento de ensinamentos, cantos, e orientações que são destinadas aos cheramois e chary’i para que repassem a comunidade o modo de vida mais propício para alcançar o lugar junto aos ancestrais após a morte, lugar esse, chamado Yvy Marae’y, lugar em que nada perece, tudo que existe perdura, onde não é necessário se plantar, já que as plantas nascem sozinhas, onde não há morte, e nem sofrimento também. Ao contrário, nesta terra, considerada imperfeita, há doenças, e o corpo padece, e todos os elementos são imperecíveis. No passado, antes da invasão dos brancos no território guarani, onde se podiam caminhar com liberdade, onde não havia cercas, propriedade privada, e nem mesmo fronteiras, os Guarani podiam caminhar livremente e viver um modo de visa mais próximo do que vivem os ancestrais nas plataformas celestes, o que possibilita um corpo mais apto para alcançar esse lugar, que hoje encontra limitações por não viverem um modo de vida tão próximo quanto viviam antigamente, pela destruição das matas e pela extinção de seres que eram fundamentais para o seu modo de vida. Nessa época, os Guarani caminhavam para encontrar nos portais sagrados que os levariam para a Yvy Marae’y. Mas não era somente esse motivo de cunho mais religioso que os faziam se mover constantemente, mas também, visando dar um descanso aos lugares que habitavam para que as matas pudessem estar se regenerando, um modo de respeitar o tempo de fertilidade dos seres das florestas, buscando assim outros lugares para viverem até que esses antigos lugares estivessem de novo regenerados ecologicamente. Por conta dessa mobilidade, os Guarani ficaram conhecidos como um povo nômade, mas isso não confere, pois como nós vimos, essa mobilidade está ancorada na religiosidade e em tecnologias de cuidado com o mundo que vivem.