Mborai miri  - 
Mão segurando instrumento musical de corda similar a violino

Ressonâncias de fortalecimento e resistência

Os textos dessa seção foram produzidos com base em uma conversa via vídeo-chamada entre os interlocutores Renan Pinna e Renata Abel com Marcelo Benite Kuaray Papa, cacique da comunidade guarani da Aldeia Tava’i, dentro do escopo do Projeto Nhemongarai, em 15 de abril de 2021. O texto a seguir foi elaborado por Renata Abel.

O cântico representa essa liberdade, de ter, ser paz no coração.”
Marcelo Benite Kuaray Papa

Para tratar do universo dos cantos guarani, podemos fazer uma distinção de ao menos duas categorias: os mborai ou tarova, àqueles que se cantam dentro do opy, os “cânticos sagrados da casa de reza”, como disse Marcelo; e os mborai mirim ou mborai oka reguá, àqueles que o coral ou “grupo de cantos” entoam, cantados em espaços abertos. Os cânticos sagrados do opy acompanham rituais e cerimônias, como o Nhemongarai, e pedem mais concentração para serem entoados, escutados e sentidos. Além disso, não é qualquer pessoa que os canta: quem o entoa é geralmente aquele que se dedica ao caminho espiritual, ao tape porã, o belo caminho. Já os cantos do coral, “é mais pra animar o espírito, animar a sua força (…) é uma música de consolo também, de consolar os seus próximos… porque às vezes através dos cânticos também a gente recebe a nossa sabedoria, fortalecimento, então.. é o cântico mais pra se animar espiritualmente”, explica Marcelo. Os corais guarani são compostos por jovens e crianças e começaram a existir e se multiplicar por volta da década de 90, sendo o “registro oficial” dessa empreitada em direção aos ouvidos não-indígenas o álbum Ñande reko arandu (2000), gravado no estado de São Paulo. Aos poucos, as comunidades de outras regiões também foram criando seus grupos e, atualmente, a maioria das aldeias guarani conta com seu respectivo coral.

A motivação desses grupos, além de animar e fortalecer o espírito, é funcionar como uma estratégia para mostrar-se aos não-indígenas e assim garantir o respeito e o reconhecimento: “hoje o grupo de cânticos leva o modo, o jeito, o costume, a cultura pra que o não-indígena possa conhecer um pouco através das músicas”, coloca Marcelo e, não à toa, diz que o grupo de cantos é como um “grito de liberdade”. Por isso, ele segue explicando, as crianças e jovens cantantes dos corais são reconhecidos como xondaro e xondaria kuery, guerreiros e guerreiras das comunidades, pois se apresentam nas escolas, universidades, teatros, em pontos culturais… “Eles tão levando o nosso pedido de respeito (…) pela cultura indígena, então eles levam ao mesmo tempo nossa resistência”. Assim, o grupo de cantos se manifesta como uma estratégia de resistência, de reconhecimento e de demarcação dos territórios sutis e concretos que os Guarani ocupam, há muitos anos e até hoje. Por isso que, frente às dificuldades de um mundo colonizado e colonizante, Marcelo diz que “a gente vai ter que resistir e insistir, pra que a nossa cultura possa ser ouvida através do canto”. Os cantos são uma maneira, aparentemente indireta mas totalmente eficaz, de desmanchar distâncias estabelecidas pelo preconceito, racismo e/ou estigma, pois são como flechas lançadas ao coração – servem não para guerrear com as pessoas, mas para destruir sua ignorância: “Através do cântico, mesmo [se] a pessoa não querer ver o grupo se apresentando, mas a pessoa vai tá ali, e qualquer momento vai tocar no coração o cântico porque a pessoa tá, as músicas entra no coração pra conquistar as pessoas, para respeitar a cultura”.

Mas sobre o que os cantos dos corais tratam, então? Marcelo oferece algumas perspectivas: “Às vezes um cântico representa a liberdade, um cântico representa o respeito pela mata, pelo rio, às vezes o canto representa o nosso Pai Sol, (…) agradecendo o Sol, de ter oportunidade de ver o dia, o amanhecer”. Além disso, coloca ainda que “a gente vai falar da beleza mas da beleza que a divindade oferece, a beleza do Sol, a beleza de um rio, a beleza da mata, (…) a gente vai tá agradecendo o que o mundo oferece pra nós”. Assim, os cantos evocam e apoiam o lembrar-se de Nhanderu, da origem do espírito, e assim se levantar para seguir caminhando, alegrando-se e fortalecendo-se. Nos termos budistas, talvez se possa dizer que os cantos manifestam uma Terra Pura, um lugar favorável para praticar ações virtuosas. Para tentar figurar um pouco desses sentidos e sentimentos cantados, Marcelo sugeriu um canto, do qual é autor, junto com sua tradução:

Mba’epú 

(Instrumentos Tradicionais Guarani)

Mba’epú onhendú      O violão está tocando
takuapú onhendú        a taquara artesanal está tocando
popyguá onhendú       a varinha tradicional está tocando
Opy’i re mbora’i onhendú,   na casa cerimonial estão se ouvindo os cantos
opy’i re mbora’i onhendú
    na casa cerimonial estão se ouvindo os cantos

Marcelo compartilha algumas palavras acerca desse cântico, colocando que é “uma música que reflete muito o respeito pela casa de reza, e o respeito pelos instrumentos tradicionais”. O sentido do canto, embora pareça “simples” quando tomado na sua tradução para o português, aprofunda-se de acordo com o entendimento que cada pessoa guarani nutre no seu caminhar no modo de vida guarani. Assim, parece coerente dizer que pode levar uma vida para entender com profundidade e amplidão o significado e sentido de apenas uma música. Além disso, a intensidade com que um canto pode fortalecer, inspirar, alegrar e ensinar parece depender do quanto seu sentido profundo se realiza nos corpos (da pessoa e entre as pessoas). Afinal, os cantos não são “escritos”, eles vêm através da concentração e da inspiração, “nascem dentro do opy, através do tcheramoi, através do sonho, através de uma criança nasce uma música”, Marcelo explica. Assim, os cantos evocam a memória ancestral e tornam-a viva no agora e, por conta disso, são “uma música de fortalecimento, uma música que vai trazer paz, harmonia, alegria pra comunidade.”

Por fim, Marcelo evidencia o potencial de produzir saúde (física, emocional e espiritual) dos cantos, quando coloca que  “uma música pra mim, quando tu sente rebaixado assim né, no fundo assim, você começa a cantar, ou pegar instrumento sagrado, te tira na hora [do fundo]”. Assim, os cantos guarani trazem em si inteligências capazes de alegrar o espírito e o corpo, de transmitir saberes e sabedorias, de fortalecer e encorajar os que caminham nessa terra. Pode-se dizer que são um modo tradicional dos Guarani de adiar o fim do mundo, para aludir a Krenak (2019), e é feliz a constatação de que, mesmo com as circunstâncias terem se transformado radicalmente nas últimas dezenas ou centenas de anos, isso tem funcionado.

Referências Bibliográficas:

ABEL, Renata. “Lá no alto se canta o tempo inteiro”: formas de ensinamentos Guarani-Mbya e o potencial dos cantos como (trans)formação. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Ciências Sociais) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.

KRENAK Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2019.MACEDO, Valéria. Dos cantos para o mundo: Invisibilidade, figurações da cultura e o se fazer ouvir nos corais guarani”. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 51, p. 357-400, 2012.